Por que a Psicologia Analítica trabalha com sonhos?
- Marcos André Macedo Martins
- 11 de jan. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de out. de 2024
A Psicologia Analítica, ou seja, o procedimento prático da análise psicológica desenvolvida por Carl Gustav Jung, tem como um de seus principais recursos a análise dos sonhos trazidas ao consultório pelos pacientes. Mas se a terapia tem um caráter prático para se lidar melhor com as inúmeras questões que se colocam diante de todos nós no cotidiano, por que deveríamos nos deter em algo que parece tão distante do dia-a-dia como um sonho?

Jakobs Droom - Ary de Vois, Public domain, via Wikimedia Commons
Não é incomum que, ao se deparar com um sonho aparentemente desprovido de sentido, se tenha a tendência a considerá-lo como descartável, mero depositário de lembranças do que foi vivenciado, algo cujo procedimento mais adequado para se lidar seja simplesmente ignorar e esquecer. No entanto, a prática nos mostra que há uma maneira muito mais proveitosa de se lidar com os sonhos.
Para compreender a importância dos sonhos na psicologia analítica, primeiro precisamos compreender que a análise dos sonhos não pode encontrar utilidade prática sem a hipótese do inconsciente. Isto porque Jung compreende que os sonhos são o principal meio de acesso ao inconsciente, ou seja, daquilo que há de desconhecido em nós. Para Jung, sobre o inconsciente, nada se pode dizer a respeito, pois nada pode ser dito acerca daquilo que desconhecemos. No entanto, podemos verificar sua atuação por meio dos seus efeitos e produtos e, dentre seus produtos, encontram-se os sonhos. Afinal, um sonho não é criado de maneira consciente, logo, é produto do inconsciente.
Jung aponta que os sonhos, sobretudo na fase inicial do tratamento, podem trazer à luz o fator etiológico (a causa) inconsciente essencial daquilo que está perturbando o paciente, retratando a situação interna do sonhador. Mas tão importante quanto nos trazer à luz a etiologia da perturbação, os sonhos não raras vezes nos contemplam também com um vislumbre do prognóstico (desenvolvimento futuro) do caso em questão, além de uma orientação para a terapia. No entanto, existem casos e casos. Nem sempre se poderá ter um diagnóstico ou prognóstico claro a partir de um sonho inicial e, muitas vezes, são necessárias sequências de sonhos para se chegar a uma conclusão assertiva.
Ao falarmos sobre a interpretação de sonhos, cabe destacar algumas questões muito importantes: apesar de ser possível traçar paralelos culturais (coletivos) para as imagens oníricas, ao se interpretar um sonho com a seriedade exigida pela psicoterapia é sempre de absoluta importância compreender qual o significado daquela imagem específica para quem está relatando o sonho, pois a mesma imagem sonhada por pessoas diferentes pode significar coisas completamente diferentes. Mais do que isso, a mesma imagem sonhada por uma mesma pessoa pode ter significados distintos até para ela mesma em diferentes fases da própria vida. Por isso, ao nos depararmos com um sonho, devemos sempre encará-lo como um produto completamente novo pois, a priori, nunca sabemos o que cada sonho nos quer dizer, devendo-se por fim, encontrar um livre consenso acerca da interpretação.
Cabe mencionar também que o método de interpretação como concebido por Jung é diferente do método de interpretação concebido pela psicanálise de Freud, pois o método de Jung não utiliza a associação livre, mas sim o que Jung denomina de amplificação. Não caberá aqui uma explicação destes métodos para não nos estendermos demais, ficando esta diferenciação para outra oportunidade.
Quando utilizamos a amplificação, precisamos entender que os sonhos devem ser interpretados de modo simbólico, que não podem ser tomados ao pé da letra, sendo necessário procurar neles um sentido oculto, e que este é um dos princípios da psicologia analítica. Muitas vezes os sonhos parecem tolos, sem sentido, ridículos, confusos, etc., e precisamos romper a resistência que esta primeira impressão pode nos causar. Mas quando nos lançamos ao trabalho sério de interpretação deste sonho, nos espantamos com o quanto ele exprime apenas coisas de grande importância para nós. Isso não significa que o inconsciente esteja tentando esconder por trás de uma fachada o que cada imagem representa - significa simplesmente que esta é a forma natural do inconsciente se expressar, e que cabe a nós compreendermos a sua linguagem, que é figurada.
Também é importante mencionar aqui que, para Jung, o inconsciente possui uma função compensatória em relação à atitude consciente e que, por isso, é sempre fundamental conhecer a atitude consciente daquele que está buscando interpretar um sonho. Sobre a consciência, por ora, podemos dizer que se trata de um processo momentâneo de adaptação, sendo esta uma qualidade adquirida apenas recentemente na humanidade e, como a vida civilizada exige constante uso da consciência, é comum que nos afastemos do inconsciente. A consciência é naturalmente unilateral, e isto é uma característica fundamental para que esta cumpra o seu papel. Mas, em determinado momento da vida, podemos estar tão adaptados a uma determinada atitude, que quando esta atitude se torna excessivamente unilateral, ela deixa de ser adaptativa, o que pode gerar um transtorno. Então, ao olharmos para um sonho, levando em consideração a função compensatória do inconsciente, Jung afirma que podemos perguntar qual é a atitude consciente que é compensada pelo sonho.
O afastamento que pode ocorrer entre a consciência e o inconsciente não significa que o inconsciente esteja ausente no cotidiano das pessoas, pois os conteúdos do inconsciente estão presentes o tempo todo, atuando por detrás de nossas atitudes conscientes, nos influenciando, por mais que tentemos ignorar a sua influência. Inclusive, os sintomas psicológicos também possuem sua origem no inconsciente. É por isso que compreender aquilo que está no inconsciente é também compreender a si mesmo. Isto não significa, de modo algum, render-se aos conteúdos inconsciente de forma acrítica, pois isto só poderia levar à destruição. Quando interpretamos sonhos em consultório, buscamos alcançar uma espécie de união dos conteúdos conscientes e inconscientes, que permita uma nova atitude consciente que leve em conta também o inconsciente.
A interpretação dos sonhos nos permite vislumbrar aquilo que não queremos ver, ou que estamos ocupados demais para prestar atenção na correria do dia-a-dia, mas que está sempre nos influenciando ou nos apontando caminhos. Cabe a nós, conscientemente, escutar o que estes sonhos nos querem dizer para que possamos realizar uma mudança de atitude, permitindo assim que a vida possa seguir seu fluxo.
REFERÊNCIAS:
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. Tradução de: Eva Stern; revisão técnica Jette Bonaventure. (Obras completas de C. G. Jung, v.5)
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. Tradução de: Maria Luiza Appy. (Obras completas de C. G. Jung, v.7/1)
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. Tradução de: Mateus Ramalho Rocha. (Obras completas de C. G. Jung, v.8/2)
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. Tradução de: Maria Luiza Appy. (Obras completas de C. G. Jung, v.16/2)
JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica: escritos diversos. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. Tradução de: Araceli Elman, Edgar Orth. (Obras completas de C. G. Jung, v.18/1)
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